Aí vai um aviso, logo na primeira linha desse texto: você nunca viu algo como “O Animal Cordial” (leia a crítica aqui) no cinema brasileiro.
Com direção e roteiro de Gabriela Amaral Almeida e produção de Rodrigo Teixeira (“Me Chame pelo Seu Nome”), o longa de terror tem sangue, sexo, violência. Conta a história de Inácio (interpretado por Murilo Benício), que comanda seu restaurante – e seus funcionários – com pulso filme, para dizer o mínimo. Uma noite, perto do horário de encerramento, dois assaltantes armados entram no local e rendem funcionários e três clientes que ainda estavam lá.
É quando Inácio saca uma arma e reage ao assalto. Só que o que deveria ser uma tentativa de proteção às pessoas que estavam ali se transforma em outra coisa: Inácio se revela pior do que os bandidos. Em um intervalo de seis horas, a vida dos personagens muda completamente.
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“Eu estava almoçando com a Luana [Demange, que também escreveu o argumento do longa] em um restaurante, em São Paulo. Ficamos sabendo que, uma semana antes, aquele mesmo restaurante havia sido assaltado”, conta Gabriela, em entrevista concedida à imprensa. “Começamos a pensar sobre como o medo e a promessa de segurança vendem hoje em dia.”
Criaram, então, a história de “O Animal Cordial”. “A minha motivação também veio de um embate de opostos, que acho importante vermos na arte: homem e mulher, negro e branco, pobre e rico. E isso foi misturado à ideia do poder e como possuir poder pode mudar alguém e fazê-lo subjugar os outros.”
O poder de um homem (e de uma arma)
Em “O Animal Cordial”, o proprietário Inácio vê na funcionária Sara (Luciana Paes) sua maior aliada. Além do uso excessivo de violência, ele tem sobre ela um domínio masculino – e ela, inebriada pelo poder dele e pela busca incessante pelo homem ideal, se deixa levar.
“Quando gravamos o filme, em 2015, todo esse debate sobre feminismo não estava tão forte”, diz Luciana. “Foi estranho, porque quando filmamos, eu pensava que o filme era totalmente ficcional. Quando eu o assisti pela primeira vez, no ano passado, eu percebi que estava mais assustada com o que acontecia fora da sala de cinema do que com o que rolava no filme. Hoje, penso em “O Animal Cordial” mais como uma alegoria, de uma forma assustadoramente real.”
O machismo e a homofobia
O ator Irandhir Santos interpreta Djair, o cozinheiro do restaurante. Apesar de seu profissionalismo e de seu talento, ele incomoda Inácio: o chefe julga seus cabelos compridos, seu jeito afeminado. De cara, acusa Djair de ter planejado o assalto ao estabelecimento.
Santos conta que construiu Djair a partir de uma memória de infância. “Me senti movido afetivamente, porque o personagem que a Gabriela me deu me fez lembrar de uma figura muito importante na cidade onde fui criado. Parece que eu tinha esse dever, de alguma forma, de retratar aquela figura da maneira mais bonita que eu pudesse”, afirma.
O ator também concentrou a preparação do personagem na relação estranha entre patrão e empregado. “Além disso, é um traço importante trazer um personagem que não se determina mulher nem homem. Não é transsexual, nem travesti. Havia também o desafio de interpretar alguém que se encaixa numa ambiguidade de gêneros.”
A perda da humanidade
Em “O Animal Cordial”, Inácio e Sara perdem qualquer noção de humanidade em pouco tempo.
“Até que foi fácil chegar no estado final, animalesco da Sara”, diz Luciana. “O difícil mesmo foi encontrar quem era essa mulher antes disso. Era uma mulher que poderia se sentar do seu lado no ônibus e acabou fazendo tudo o que fez.”
A atriz explica que o elenco conseguiu se encontrar quando começou a pensar no que significa o cansaço. “Acho que uma pessoa cansada faz uma decisão ruim, não consegue consertar, faz mais uma decisão ruim, depois outra, mais outra e outra… e sua vida mudou em seis horas porque você está cansado”, diz Luciana. “É assustador, e acho que isso é possível para todos nós.”
Assim como o argentino “Relatos Selvagens”, “O Animal Cordial” mostra personagens que foram empurrados para o outro lado da linha tênue que separa a civilização da barbárie. Rodrigo Teixeira, porém, reitera que “Relatos” não foi uma referência porque nem havia sido lançado quando “O Animal Cordial” começou a ser filmado.
“Acho “Relatos Selvagens” um filme brilhante”, diz Murilo Benício. “Mas ele não se aprofunda nos personagens como “O Animal Cordial” se aprofunda. Até porque nosso filme é uma história só [enquanto “Relatos Selvagens” é formado de vários curtas-metragens]. Tivemos tanta profundidade que chegamos ao ponto de ter um romance no meio desse filme, e é muito doido enxergar um amor nessa história. A coisa mais legal da Sara é justamente a relação de amor, paixão e sexo que ela tem com o Inácio no meio daquela loucura toda.”
A diretora Gabriela também afirma que vê diferenças grandes entre as duas obras. “O que mais me interessa no nosso trabalho é que o explícito não é o mais importante. O filme tem muita violência gráfica e muito sangue, mas o explícito esconde o implícito, que são as batalhas e os desejos internos e sombrios de cada personagem. Eles são mais contundentes: o racismo, o machismo, a homofobia, o classismo. Acho que, por isso, estamos em um terreno muito mais trágico do que “Relatos Selvagens”, que eu vejo mais como caricato – não que isso seja ruim.”