“Muitos produtores de elenco negam a existência do racismo no teatro e no audiovisual”, diz Rodrigo França; leia entrevista

O artista destacou o olhar viciado e racista no universo cultural


Os profissionais da cultura costumam tomar à frente quando o assunto é protestar e combater o racismo, mas isso torna o mundo artístico menos preconceituoso? Há mais representatividade nos palcos e nas telas?

“Quem trabalha com arte deveria ser revolucionário, progressista, subversivo… Mas, o que vemos por aí, ainda é a reprodução dos setores mais reacionários do país”, diz Rodrigo França em entrevista ao Culturice.

Rodrigo França fala sobre o racismo na cultura (Divulgação)

O ator, diretor, roteirista, filósofo e cientista social sabe do que fala e há mais de 10 anos trabalha para fortalecer a presença de profissionais negros no mercado artístico, criando projetos nos quais eles têm espaço, tanto em cena quanto nos bastidores. É inspirador e agregador.

Escalado para a próxima temporada da série “Arcanjo Renegado” (Globoplay) e autor do delicado livro “O Pequeno Príncipe Preto”, Rodrigo faz questão de manter a perversidade do racismo estrutural em discussão. “Os fazedores de artes estão dispostos a mudar essa relação de poder e privilégio?”

Recentemente, o artista atuou no espetáculo “Contos Negreiros do Brasil”, visto por mais de 60 mil espectadores, e dirigiu “Oboró – Masculinidades Negras”, vencedor de dois prêmios Shell (dramaturgia e figurino). Agora em julho, na cerimônia de premiação da APTR, recebeu o troféu em nome do Movimento Teatro Negro do Rio de Janeiro, vencedor na categoria especial.

No bate-papo abaixo, Rodrigo fala do preconceito no meio cultural e sobre o papel da arte na luta constante contra o racismo.  

Cena de “Contos Negreiros do Brasil” (Caique Cunha/Divulgação)

Entrevista Rodrigo França

Culturice – A gente sabe o quanto é fundamental a representatividade nas telas e nos espetáculos, e isso só começa a acontecer lá atrás, na escalação. Por isso, já que ainda estamos tão atrasados nisso, você acha que produtores e diretores precisam se estruturar para conversar sobre esse assunto antes de cada projeto e se forçar a sair da caixinha e observar os muitos artistas negros que talvez nunca tivessem entrado “no radar”? Ou seria por outro caminho?
 
Rodrigo França – Primeiro entender que o racismo sendo estrutural ele vai perpassar em todas as relações sociais. Muitos produtores de elenco negam a existência do racismo no teatro e no audiovisual. Basta olhar quem está nas relações de poder/comando. Quem está na subalternidade em um set de filmagem ou no espaço teatral? Trabalhar com arte não faz com que o racismo não seja reproduzido. Existe um olhar viciado e racista.
 
Qual a narrativa que a população negra é reproduzida na arte? O problemático é que, quando se questiona e reivindica melhora, as pessoas minimizam a situação, se excluem do problema. No Brasil, racista é só o outro. Não perceber que há algo errado é desonesto.
 
De quais outras formas tanto os artistas quanto os espectadores podem ajudar para acelerar essa mudança efetiva no mundo das artes?
 
A pergunta seria: “Os fazedores de artes estão dispostos a mudar essa relação de poder e privilégio?”. Olha que o pleito é por divisão desse poder, ninguém quer o poder inteiro. Dá para todo mundo fazer o seu trabalho e receber por isso de forma justa. Mas o Brasil está disposto a deixar de ser “Brasil-Colônia”? Ainda temos comportamentos de senhores de engenho e sinhás em nosso setor profissional. Primeiro, quem tem privilégio deve assumir que é beneficiado por isso, para começar a pensar em mudança, caso ache que algo deva ser mudado.
 
 

Rodrigo França se tornou um ícone do movimento negro (Divulgação)

 
Imagino que deva ser muito cansativo ter que ficar falando sempre sobre racismo, que é algo que não deveria ter existido nunca, e ficar compartilhando dores que também não deveriam ter sido causadas. Na sua opinião, qual o papel da arte na discussão de assuntos tão profundos assim, como o preconceito?
 
Eu acho engraçado a fala “descansa militante”. Eu amaria descansar, amaria não ter que falar sobre essa pauta, mas alguém tem que falar e agir. Isso adoece, consome por dentro. Ainda mais quando quem se diz aliado ou antirracista não deseja mudar ou nega tal problemática. Quem trabalha com arte deveria ser revolucionário, progressista, subversivo… Mas, o que vemos por aí, ainda é a reprodução dos setores mais reacionários do país. Não basta dizer que o problema é o outro. O que eu faço para mudar essa estrutura? No Brasil, há mais de cinco séculos, as mesmas mãos criam narrativas – mãos brancas, masculinas, heterossexuais e cisgêneras.
 
Você acha que existe alguma maneira mais prática e eficaz de acelerar a mudança de mentalidade da população como um todo ou realmente é algo muito lento e que inevitavelmente vai demorar gerações e gerações para gerar alterações expressivas?
 
Acredito na mudança. Não existe uma receita para mudar algo tão sério. Mas temos que tirar a sujeira de baixo do tapete. Não vivemos uma democracia racial que é vendida há séculos. Tem 120 anos de uma suposta abolição de escravatura, sem reparação. A cada 23 minutos um jovem negro é morto. Como um país vai dar certo se essas pautas não são urgentes?
 
A pandemia e os fortes protestos que aconteceram recentemente já inspiraram algum novo projeto cultural seu ou alguma outra iniciativa na área do entretenimento?
 
A vida negra tem importância para a população negra e para algumas pessoas. Ainda existe uma comoção seletiva. Uma criança negra morre dentro de casa, assassinada pela polícia, e a sociedade não se indigna. Imagina se a criança fosse branca? Não será “hashtag” que vai mudar algo, será consciência plena que estamos vivendo em um Estado que mata pessoas. Mas primeiro a sociedade deve enxergar que essas vidas que vão a cada minuto são vidas importantes.  
 
O coletivo audiovisual NucleoAr [do qual Rodrigo faz parte] produziu o filme “Liberdade?”. A narrativa faz uma provocação sobre o quanto, até nesse momento de doença e morte, as distinções são evidentes. Falamos sobre negritude a partir de um olhar de dentro, onde o roteiro e direção estavam atentos ao “lugar de fala”.
 

Vídeo de “Liberdade?”: