Esta edição do nosso projeto 5 por 5 conta com a participação de dois astros do teatro musical: Bianca Tadini e Tiago Barbosa! Eles trocaram perguntas e compartilharam experiências e pensamentos sobre suas carreiras.
O projeto 5 por 5 tem como objetivo estabelecer diálogos ricos e interessantes a partir da conexão entre diferentes áreas, gêneros, experiências e pensamentos. Sempre teremos a participação de duas personalidades, e cada uma fará 5 perguntas para a outra, sobre qualquer assunto – dá para falar sobre arte, política, filosofia, família, sentimentos, sociedade, o que for. Por isso, a curiosidade não fica apenas em relação às respostas, mas também em saber quais serão os questionamentos elaborados pelos participantes.
Bianca Tadini é atriz, cantora, preparadora vocal e tradutora formada em Musical Theater pela American Musical and Dramatic Academy de Nova York. É uma das principais artistas do teatro musical brasileiro, tendo atuado como protagonista em espetáculos como “O Mágico de Oz” e “Cinderella” – esse último ao lado do próprio Tiago. Premiada versionista, é responsável, ao lado de Luciano Andrey, pela versão do musical “Anastasia”, marcado para estrear em 10/11 no Teatro Renault, em São Paulo.
Tiago Barbosa passou os últimos seis anos em Madrid estrelando as superproduções “O Rei Leão” e “Kinky Boots”. Ator, cantor e arte-educador carioca, o artista acaba de retornar ao Brasil para protagonizar o espetáculo “Clube da Esquina – Os Sonhos Não Envelhecem”, no qual interpreta Milton Nascimento – a estreia foi nesta sexta (28) no Teatro Liberdade, em São Paulo. Tiago também integrou o elenco de “Mudança de Hábito” e “Cinderella”, tendo sido o primeiro negro no mundo a interpretar o papel de Príncipe Topher.
Bianca Tadini entrevista Tiago Barbosa
Bianca – Você já fez inúmeros espetáculos grandes e renomados e papéis de destaque maravilhosos. De Simba, em “O Rei Leão”, a Lola, uma drag queen, em “Kinky Boots”. Qual papel foi seu maior desafio até agora?
Tiago – Eu pensava que tivesse sido a Lola, no “Kinky Boots”, porque era um personagem completamente diferente de mim. A Lola é super extrovertida, eu dei uma vida pra Lola pensando em uma mulher trans, caminhar sobre vários tipos de salto alto, ser feminina, mostrar esse feminilidade de uma maneira natural ou o mais natural possível. E tentar defender ou fazer essa mulher da maneira mais digna possível, acho que essa é a palavra.
Estar com tantas trocas de perucas, usar peruca, que era algo que eu nunca tinha usado, um cabelo tão grande, entender como dançar de vestido, diferentes tipos de vestidos, diferentes tipos de maquiagem, “quick change” de 30 segundos, de 18 segundos, isso pra mim era naquele momento um grande desafio.
Aí me chega o Milton Nascimento, que, de verdade, é o meu primeiro biográfico, e esse foi um grande desafio. Dar vida a alguém vivo, tão especial para o Brasil, que está fazendo seu momento de retirada do cenário musical brasileiro, em cartaz, no mundo todo. Dar vida a alguém que é um ícone vivo. E com pouco material. Nós tivemos pouquíssimo tempo de estudo.
Nós tivemos uma leitura, um momento apenas para sentar, ler, entender… e o restante foi meu trabalho. A Vanessa Veiga [diretora de casting] me ajudou muito antes de vir para o Brasil, me mandando alguns vídeos do Milton, pra me ajudar. Lemos muito juntos, eu e a Vanessa. Mas, à parte disso, foi um processo meu, comendo todo e qualquer tipo de entrevista do Milton Nascimento que você possa imaginar, arquivos, conversando com pessoas. Porque eu não tive nenhum contato com o Milton para fazer esse trabalho.
Então foi algo muito complicado, um trabalho muito minucioso. Eu olhava muitas fotos do Milton, desde a adolescência dele, ouvia o timbre de voz…
“A minha ideia nunca foi fazer uma imitação do Milton, e, sim, uma singela homenagem com muita generosidade para esse homem.”
Em alguns momentos, eu vou, me aproximo do timbre dele, em outros momentos… eu entendi que a música do Milton Nascimento é sensorial. Quando eu entendi isso, aí era outro lugar de pesquisa, era o lugar de abrir o coração. Então eu acho que esse, sim, marca um processo bem diferente na minha vida.
Bianca – Você acha que o Brasil está muito atrasado no quesito representatividade no Teatro Musical em comparação com os Estados Unidos e a Europa?
Tiago – Eu acho que infelizmente o Brasil ainda usa o quesito representatividade como forma de entrar na moda ou ganhar-se dinheiro. Não adianta eu falar sobre representatividade ou colocar um negro para poder fazer ou estar protagonizando se de verdade eu não acredito nisso, se de verdade eu não dou subsídio para que possa ser inserido na sociedade uma maneira firme e com respaldo mesmo.
Não adianta dizer que “nossa, nós temos o nosso protagonista que é negro”, se eu não faço pautas com ele, mas não falando sobre a cor dele, mas falando sobre o potencial desse sujeito, desse ser humano. Se eu ainda olho para as divas do teatro musical brasileiro e só falo sobre as mesmas pessoas – eu amo cada uma delas, mas eu sinto falta, claro que eu sinto falta, de ver uma mulher negra que possa fazer… E isso também não depende somente das grandes produtoras.
O Brasil sai em vantagem em relação a vários outros países onde eu já trabalhei porque existem muitos blogs de teatro musical, existe um nicho muito bacana de pessoas que falam, de pessoas que geram conteúdo para esse público, mas essas são as mesmas pessoas que também não fomentam isso. Ou seja, que ajudam sempre a endossar a ideia do perfil ser um perfil branco.
Isso é complicado porque, quando nós estamos trabalhando com teatro, estamos trabalhando sobre a informação, nós geramos informação, nós somos sujeito político, nós trazemos questionamentos, mas nós também priorizamos um domínio dentro desse perfil, porque sempre são os mesmos, sempre é o mesmo perfil, sempre se fala sobre as mesmas pessoas, sabe.
Hoje em dia, se fala na Rede Globo, por que que sempre são as mesmas negras que fazem as mesmas novelas? S e tem aí a Sharon, se tem aí a Jennifer Nascimento e tantas outras mulheres negras incríveis, belíssimas, talentosíssimas dentro de uma emissora e que não são protagonistas.
Por que existe tanta dificuldade em montar um elenco assim? Aí eu te digo: e dentro do teatro musical, se existem tantos meninos incríveis, sabe.
“Por que um determinado antagonista ou determinado protagonista tem que ser um cara branco? Por que tem que sempre ser os mesmos?”
Por que que quando se fala em melhor ator de teatro musical brasileiro ou nos divos do teatro musical brasileiro você fala sempre sobre os mesmos nomes e não existe um negro ali dentro? Por que nós priorizamos e enquadramos esse tipo de estereótipo, porque é engraçado dizer, mas é difícil de comprar uma briga.
Bianca – Qual o momento de maior emoção na sua carreira?
Tiago – Eu tenho vivido um momento muito singular na minha carreira. Sem dúvida pra mim, o momento mais incrível foi quando os meus pais colocaram os pés no teatro pela primeira vez me assistindo fazer “O Rei Leão”, da Time For Fun. Esse sem dúvida foi o momento mais incrível.
Mas eu posso dizer também que o da Julie Taymor foi sensacional [a diretora americana de “O Rei Leão” foi às lágrimas durante a performance de Tiago nas audições da peça e disse que “nunca ninguém tinha feito” um Simba como ele].
Agora, ser indicado a um prêmio de melhor ator de teatro espanhol com o Antonio Banderas… e na última semana eu recebi a Fernanda Montenegro no teatro, e ela simplesmente falou palavras que aquela mulher não precisava dizer, porque essa mulher tem 93 anos e já viu o que há de melhor no mundo, é a nossa diva, é a nossa dama do teatro e da televisão e do cinema. E ela se emocionou e falou coisas belíssimas, e no final me deu um beijo na boca. E isso pra mim vai ficar marcado no meu coração.
Bianca – Você tem vivido na Espanha há algum tempo. Quais as maiores diferenças entre o mercado de musical de lá e daqui?
Tiago – Bem, o número 1 é que nós trabalhamos muito menos do que lá. Lá, nos fazemos espetáculos de terça a domingo, e existe um processo sempre nas grandes empresas, espetáculos de larga duração, que é a supervisão, que de 6 em 6 meses ou de 8 em 8 meses temos avaliação pra saber como está nosso rendimento dentro do espetáculo – o que faz a galera sempre estar muito tensa e trabalhar sempre dando mais do que o 100.
Eu acho que nós estamos no mesmo nível, sabe, ou às vezes até muito mais. O brasileiro tem paixão trabalhando, o brasileiro faz pra valer, ele faz com o coração, e isso é perceptível para o público. Eu acho que estamos pau a pau.
Bianca – Você já realizou alguns sonhos seus. Tem algum que ainda falta ser realizado? Pode ser uma personagem, algo que deseje na sua vida pessoal…
Tiago – Quero muito fazer televisão, quero muito fazer cinema. Eu desejo na verdade seguir fazendo o que eu faço com muito amor e com muito carinho e continuar sendo respeitado dentro do meu trabalho, pelas pessoas, tratando todo mundo com muito respeito e com muito carinho.
É uma carreira muito difícil, e se você não tem disciplina complica mais ainda. E às vezes nós dificultamos o nosso próprio mercado.
“Adoraria quebrar o protocolo aqui no Brasil outra vez e fazer um personagem também feito e pensado para um homem branco.”
Foi um prazer responder a essas perguntas e eu amo a Bianca, e tenho vontade de voltar a trabalhar com ela em breve.
Tiago Barbosa entrevista Bianca Tadini
Tiago – Você acredita na arte também como um movimento político? Se sim, qual seu posicionamento frente à realidade política que vivemos hoje?
Bianca – Com TODA certeza! A arte é o reflexo de um povo ou sociedade e de uma era. Brecht, Boal são exemplos claros de arte política no teatro. Ao meu ver, a arte que é apolítica em um momento político delicado, de grandes injustiças e sofrimento do povo, JÁ É POLÍTICA.
Não se posicionar é escolher um lado. Boal disse: “Pode ser que o teatro não seja revolucionário em si mesmo, mas não tenham dúvidas: é um ensaio da revolução!”. A nossa realidade política nesse momento é catastrófica.
“Temos um governo que trata os artistas como inimigos, que não investe em educação e cultura propositalmente, pois quer manter o povo sem pensar.”
A educação e a arte são fundamentais para que um povo possa desenvolver pensamento crítico. Eu sou contra o governo atual, que é autoritário, preconceituoso, que tratou o povo com descaso durante a pandemia, que não se importa com as grandes injustiças e faz muito pouco por aqueles que são menos privilegiados. E faço questão de me posicionar abertamente.
Tiago – Sabemos que você é uma grande versionista! Como funciona esse processo? Em algum momento você adapta o texto pensando na palavra na boca do ator ou é um processo mais técnico?
Bianca – Eu penso nisso o TEMPO TODO quando estou trabalhando em uma versão! Claro que o processo também é técnico pois existe todo um trabalho de pesquisa (histórica, pesquisa do material original e seus autores) e também regras a serem seguidas (rimas, rimas internas, sílabas tônicas, prosódia).
Então, antes de começar o trabalho, vem a pesquisa. Na sequência, vem entender aquela obra, a estrutura dramatúrgica. E depois seguimos traduzindo. Eu sempre me coloco no lugar daquela personagem. Sempre. Como atriz eu penso muito em como entregar algo que caiba na boca do ator. Quem é aquela pessoa? De onde ela vem (a personagem)? Como ela fala?
Penso muito em entregar algo que ajude o ator a dar o seu melhor e não ter que se preocupar com nada em cena. Que se conecte com aquele material. Meu objetivo é que soe tão natural em português que pareça que a obra foi escrita originalmente na nossa língua.
Tiago – Em algum momento você pensou em desistir da sua carreira? Por quê?!
Bianca – Já! Ser artista às vezes nos traz alguns dissabores. Acho que duas vezes quando quis muito um papel e não peguei, chorei, chorei e repeti: não quero mais! Dói muito! Não quero mais. Mas claro que esse sentimento passa. Lidar com o “não” nem sempre é fácil. A gente tenta não levar para o lado pessoal, tenta ser racional e entender que a rejeição não significa que a gente não é bom no que faz. Mas nem sempre a gente consegue ser racional.
Tiago – Você acha que o teatro musical é um espaço para todos?? Todos têm as mesmas oportunidades?!
Bianca – Eu acho que o teatro musical DEVERIA ser um espaço para todos, que todos se sintam representados, mas não é bem assim. Acho que em outros países ele é mais democrático. Aqui eu acho que ainda não. Ou não o suficiente. E eu explico a razão: voltamos à primeira pergunta. A educação.
“Não temos arte, música, teatro, dança como matérias em escolas. Aliás, moramos em um país onde o governo atual não investe em educação.”
Apenas em algumas escolas de elite as crianças têm acesso a isso. E poucos têm esse privilégio de frequentar uma escola que te expõe à arte dessa maneira desde cedo.
Na Europa e até nos Estados Unidos, você tem escolas públicas que oferecem aulas de dança, canto, música, teatro desde cedo. Então mais pessoas têm acesso a isso. Aqui, no geral, as pessoas têm que pagar caro por isso. Então as pessoas mais privilegiadas têm muito mais oportunidade. Por isso a importância de termos um governo que se preocupe com a injustiça social e que invista em educação e cultura.
Tiago – Às vezes é necessário muito mais que o talento pra manter a qualidade, o equilíbrio, a disciplina dentro do nosso trabalho… Quais são os elementos fundamentais que você agrega na sua carreira, para se manter por tanto tempo nesse mundo do show business?
Bianca – Eu acredito no trabalho e no caráter. Eu acho que estou no meio há mais de 20 anos trabalhando sempre pois eu realmente levo o trabalho muito a sério. Meu foco é sempre o espetáculo. Não o meu ego, ou o que eu gostaria pra mim, mas como eu posso fazer o melhor para aquele show.
Também acredito muito em ser generosa com nossos colegas, em entender que teatro é algo coletivo. Todos ali têm sua importância e ninguém é mais que ninguém. Eu também sou muito estudiosa, então acredito que isso agrega bastante.
“Nunca deixei de estudar canto, de ler, de estudar teatro, aprimorar meu conhecimento. Eu busco saber cada vez mais.”
E também busco manter a sanidade. Acredito que cuidar da sua saúde mental é de extrema importância. Estudo, cultivar amizades, cultivar as minhas relações pessoais fora do ambiente de trabalho e um senso ético forte. Acho que é basicamente isso.