Peça “Inferno” está em cartaz no Brasil e na Argentina; leia bate-papo entre os diretores

Malú Bazán e Rafael Spregelburd, que também é o autor do espetáculo, trocaram perguntas sobre a obra e teatro em geral


“Inferno”: em cima, versão brasileira (crédito Andreia Machado); embaixo, versão argentina (Reprodução)

Destaques da reportagem

 

 

  • “Inferno” é uma peça cômica que provoca risos a partir de temas espinhosos, como pecado, culpa e ditadura

 

  • Rafael Spregelburd, autor e diretor da obra na Argentina, e Malú Bazán, diretora no Brasil, trocam perguntas sobre “Inferno” e teatro em geral

 

  • É a primeira vez que um teatro argentino do “circuito comercial” monta uma peça de Spregelburd: o Teatro Astros acomoda 500 espectadores

 

  • “Minhas experiências em turnês pelo Brasil foram muitas vezes frustrantes”, disse Spregelburd, sobre a dificuldade de se entender o castelhano por aqui

 

 

É raro demais ter uma peça estreando praticamente ao mesmo tempo no Brasil e na Argentina, mas isso acontece com “Inferno”, que chegou a Buenos Aires em setembro e acaba de desembarcar em São Paulo.

A obra foi escrita por Rafael Spregelburd em 2016 por encomenda do teatro Vorarlberger Landestheater, em Bregenz, na Áustria, para celebrar os 500 anos da morte do pintor holandês El Bosco. Agora, seis anos depois, a produção volta aos palcos dos dois países de forma adaptada.

 

 

 

Rafael Spregelburd (Reprodução)

Em Buenos Aires, o espetáculo estreou em setembro e fez tanto sucesso que ganhou novas sessões às quartas-feiras de outubro. A montagem conta com direção do próprio autor, que entra em cena ao lado de Andrea Garrote, Guido Losantos, Violeta Urtizberea e do músico Nicolás Varchausky.

O premiado ator, diretor e dramaturgo argentino Rafael Spregelburd já teve diversas de suas peças montadas no Brasil, como “La Estupidez” (2016), com Marcello Airoldi e Juliana Araripe, e “Tudo” (2022), com Julia Lemmertz e Vladimir Brichta – e ele próprio já realizou turnês pelo país, com espetáculos como “Spam” (2014), que participou do Festival de Curitiba.

Voltando a “Inferno”, o espetáculo estreou em 8 de outubro no Teatro UOL, em São Paulo, com sessões aos sábados, domingos e segundas. Malú Bazán, que nasceu na Argentina e foi criada no Brasil, dirige um elenco formado por Camila Czerkes, Gabriel Miziara, Henrique Schafer e Luciana Carnieli. 

Malú Bazán (crédito: Rogerio Alves)

Responsável também pela tradução, Malú conta que o fato de esse texto ser inclassificável talvez tenha sido o que mais a atraiu. “Durante os ensaios, muitas vezes tivemos incômodos no lidar com a peça, coisas difíceis de dizer, de ‘atuar'”, cita em um trecho do bate-papo abaixo.

Ela se refere à espécie de labirinto proposto em cena, que, por meio do humor, aborda questões delicadas relacionadas à história latino-americana, com seus momentos sensíveis e suas contradições. Na trama, uma confusão causada por um funcionário do Vaticano faz com que o inferno bíblico deixe de existir no subterrâneo e surja em detalhes da existência humana.

Cena da montagem argentina de “Inferno” (Reprodução)

A partir disso, um escritor de resenhas turísticas recebe a visita de três emissários que afirmam que a única maneira de se livrar do inferno é aprender as sete virtudes: caridade, fé, esperança, temperança, justiça, prudência e fortaleza. Sarcasmo, exagero e absurdo são alguns dos elementos que entram em cena, surpreendendo o público e quebrando expectativas.

Para falar mais sobre o espetáculo e sobre a conexão artística entre Brasil e Argentina, o Culturice propôs um bate-papo entre Rafael Spregelburd, fundador da companhia El Patrón Vázquez e também conhecido por filmes como “O Homem ao Lado” (2009) e “O Crítico” (2014), e Malú Bazán, que assina a direção de outras obras teatrais, como “Aproximando-se de A Fera Na Selva” (2018) e “A Pane” (2020). Confira, abaixo, a conversa entre os dois. 

Cena da montagem brasileira de “Inferno” (Andreia Machado/Divulgação)

 

3 perguntas de Malú Bazán para Rafael Spregelburd


Malú Bazán – Para começar, eu, como argentina e brasileira, tenho muito interesse em pensar diálogos possíveis entre esses países por meio da arte. Por exemplo, como cada um conta sua própria história, que são diferentes, mas têm muito em comum. Como você vê esse trânsito entre dramaturgias e o teatro dos nossos países?

Rafael Spregelburd – Também vejo com muito interesse esses possíveis diálogos. O teatro de Buenos Aires costuma ser muito endogâmico e acredita que seus limites são os que estabelecem os preconceitos de um momento potente, original, rico e conflituoso: o da experiência de teatro independente. Os intercâmbios com teatros de outras esferas são escassos.

Os festivais internacionais estão diminuindo de forma lamentável; já não é tão comum ver em Buenos Aires experiências teatrais diferentes da nossa maneira de fazer teatro, que – como é ampla e saudável – gera por si só muito movimento.

Mas eu, que pude viajar bastante e trabalhar sob outras “constelações”, sempre acredito que destes diálogos com outros parâmetros podem surgir as perguntas mais interessantes, formuladas a partir de um conjunto de crenças e verdades locais que não são questionadas.

“O teatro que me interessa é aquele que coloca em cena algo que de alguma forma é irrepresentável.”

Não é aquele que se acomoda às possibilidades de cada realidade, mas aquele que as amplia. O teatro portenho, por exemplo, sempre se gabou de ser muito político (um teatro pensado sobre a utopia de mudar a realidade). Mas, como era de se esperar, às vezes esse norte tão ferrenho acabou por gerar teatros muito panfletários, teatros que pregam sobre quem já se converteu a uma determinada causa ou que explicam algo aos espectadores que eles já sabem.

Da mesma forma, dada a natureza de “arte povera” de nossas salas independentes, o teatro de Buenos Aires se tornou mundialmente famoso pelo desenvolvimento audacioso de suas dramaturgias e atuações: coisas que não custam dinheiro nem envolvem tecnologia.

Na Argentina, “Inferno” está em cartaz no Teatro Astros (Reprodução)

Assim, outros aspectos, como os visuais, musicais, cenografia ou coreografia, geralmente dão lugar a textos e ideias em nossas salas. Em vez de ir “ver” teatro, muitas vezes estamos propondo ir “ouvir” teatro. Não há – nem houve – nada de errado com isso; sabemos e assumimos isso. É por isso que às vezes meus trabalhos dialogam tão mal com outras realidades com prioridades mais mistas.

Quando pude ver minhas obras montadas com muitos recursos em ricas culturas teatrais (como Alemanha ou Suíça), senti que foram um pouco superproduzidas, e que o essencial (a loucura do texto) se perdia um pouco de vista. Mas aprendi que, sempre que se dialoga, a outra cultura deve fazer a sua própria leitura, e que o diálogo nunca é fácil.

Não tenho idealizada a instância do diálogo. Muitas vezes fico impaciente. Como é possível – me pergunto – que alguém lhes esteja mostrando um elefante e que eles só se interessem pelo mosquito parado em cima do elefante? Mas também reconheço que dessa diferença de visões surgem os aspectos invisíveis, para mim, da minha própria criação.

“O Brasil, nesse sentido, sempre foi um mistério para mim.  Não é o território mais fácil do mundo para o meu teatro, tão apoiado na linguagem.”

Minhas experiências em turnês pelo país foram muitas vezes frustrantes: os brasileiros acreditam que entendem muito bem o castelhano argentino e, por isso, insistem em apresentar as obras sem legendas. Mas o sutil jamais se entende. Às vezes, até há legendas, mas o público insiste em não lê-las, porque acredita que vai entender de qualquer forma.

O teatro é um ato sutil de fala: não de letras. E essa experiência sempre se corrompe com a diferença dos dois idiomas. Além disso, nossa atuação tem algo da tradição britânica, concebida por quase-italianos: somos realistas nas formas de atuação, mas absurdos e ultrajantes nas temáticas. A forma de fazer teatro no Brasil me pareceu sempre mais ligada a outro uso dos corpos (atravessados pela dança mais do que pela filosofia), e essas tradições sempre entram em conflito.

O Brasil é um desses países estranhos nos quais, na hora de colocar minhas obras em cena, elas se saem melhor nas mãos de outros diretores (brasileiros) do que na minha. Mas insisto que esse diálogo, muitas vezes ríspido, é necessário: nenhuma das duas culturas tem que dizer à outra como as coisas devem ser feitas. Na arte (que é apenas uma no grande mapa do mundo), as fronteiras são fictícias.

 

No Brasil, “Inferno” está em cartaz no Teatro UOL (Andreia Machado/Divulgação)

Malú – García Márquez dizia que um autor passava a vida escrevendo um único livro (com títulos diferentes) e que, muitas vezes, escrevia para explicar a si mesmo algo que não conseguia explicar. Partindo dessa ideia-provocação, qual texto vem escrevendo ao longo de sua vida? Sobre o que se trata?

Rafael – É assim mesmo. Em linha com esse pensamento, sempre gostei muito da afirmação de Harold Pinter, em que ele dizia que escrevia uma obra nova para corrigir os erros da anterior. Essa afirmação é muito sábia e muito saudável. Por um lado, implica nisso: que se está escrevendo um processo e não uma série de produtos comercializáveis. Mas, por outro lado, supõe algo que me tranquiliza: que a obra perfeita não existe.

O trabalho anterior não pode ser corrigido; conterá as feridas e manchas que o tempo do artista deixou nele. Mas na próxima jogada teremos uma revanche: podemos evitar que isso aconteça novamente. Ou pelo menos mantemos essa ilusão, porque, mais cedo ou mais tarde, o novo trabalho também será o antigo e tudo o que resta é repensar tudo mais uma vez. Não há artista pior do que aquele que está muito satisfeito com o que encontrou.

Sendo assim, acho que este texto que venho escrevendo há muito tempo (eu comecei a fazer teatro e a ser reconhecido por ele desde muito jovem) teve períodos muito diferentes, que às vezes não são cronológicos, mas de procedimentos. Por exemplo, há um teatro muito antigo na minha biografia que é aquele que escrevia sem pensar em mim mesmo como diretor. São peças muito ingênuas, muito um protótipo.

Rafael Spregelburd em cena de “Inferno” (Reprodução)

Como eu não tinha as ferramentas de direção necessárias para verificar a força daqueles textos (uma dramaturgia é um plano, mas não é a obra), em geral hoje eu sinto esses primeiros textos muito estranhos. Eram textos muito formais, muito influenciados pelas minhas leituras da juventude (sobretudo, os autores do absurdo francês e inglês). Então comecei a dirigir e me tornei um grande revisor de meus próprios textos: ali, meu “texto” passou a levar em conta os atores reais que iriam encená-lo. Por isso, meu desenvolvimento como ator foi essencial para começar a escrever de uma forma diferente.

Mas outra divisão também pode ser traçada: há textos escritos para minha companhia (El Patrón Vázquez, que é como uma família estendida, com suas neuroses e suas profundidades, suas confianças e suas técnicas) e textos que escrevi como infidelidades, fora da minha companhia. São escritos realmente muito diferentes; e tenho orgulho dessa diferença.

Há também os textos escritos para serem encenados na minha cidade, com seus recursos, e os textos encomendados por teatros estrangeiros (principalmente Alemanha, Áustria, Bélgica, Itália e França). São textos também contaminados por problemas que me distanciaram de minhas próprias preocupações e autorreferências.

Muitas vezes, como no caso do “Inferno”, que foi um pedido da Áustria para comemorar os 500 anos de El Bosco, esses textos percorrem um longo caminho antes de retornar às mãos da minha companhia, que os reescreve ou reinterpreta para poder transformá-los em uma obra própria. Você sabe disso muito bem! Recebeu o texto inicial de “Inferno” como eu o entreguei aos austríacos. Seis anos depois, a peça passou por mudanças decisivas durante o período de ensaio. Eu sei que você esteve retraduzindo até o momento da estreia. Peço perdão. Assim são as coisas.

Mas há ainda outra divisão entre dois tipos de textualidades. Às vezes escrevo sem um norte, na solidão do meu escritório; em outras vezes, escrevo no palco, vendo os ensaios e corrigindo o que vejo para chegar a um texto que dê conta do processo imediato dos atores nas propostas da cena.

De qualquer forma, e apesar de todas essas diferenças que expliquei, com alguma perspectiva, acho que você pode olhar todos os meus textos e selecionar uma ou duas frases que os definam de maneira global. A primeira é que – obviamente – o mundo é estranho. Não falo de outra coisa. A segunda é que o mundo é uma construção da linguagem e não o contrário.

Elenco de “Inferno”, em cartaz no Teatro UOL (Andreia Machado/Divulgação)

Malú – Para terminar, uma pergunta que talvez até contradiga a anterior: sobre “Inferno”, acha que tem algo de diferente em relação a seus outros textos? Destacaria alguma singularidade dessa obra? Ou de tua experiência agora, com ela em cena?

Rafael – De fato, todas as obras são a mesma (têm a mesma alma), mas todas são únicas. Nesse sentido, “Inferno” veio para destruir muitas suposições cômodas. Para começar, seus assuntos podem parecer abstratos ou remotos. Poucas coisas importam menos para mim do que a religião e seus subúrbios.

Eu realmente não queria falar sobre assuntos que não me interessam: se o inferno deixou de existir para a Igreja Católica por uma decisão burocrática, parece-me mais uma anedota risível do que uma questão de preocupação. E, no entanto, ao decidir sobrepor essa charada sobre um inferno real (o da tortura e da ditadura de nosso passado recente), o trabalho se tornou incontrolável para nós.

“Pela primeira vez nos ensaios tivemos que pular algumas linhas porque simplesmente não conseguíamos dizê-las. Era muito doloroso e não estávamos preparados para representá-las. Eu mesmo não sabia como atuar. E, longe de me preocupar com isso, esse não saber começou a me fascinar.”

Pela primeira vez, também há momentos na peça em que as marcas da direção (que na minha prática tendem a ser precisas, cirúrgicas, milimétricas, rigorosas) são um pouco deixadas ao encontro do momento. Sugiro aos meus atores e a mim mesmo que não fixemos uma única maneira de passar por essa dor que se instala na peça.

Às vezes, os personagens tentam lutar contra isso, às vezes minimizam, às vezes ficam espertos e se distanciam da emoção. Não há apenas um caminho. “Inferno” é um labirinto, e foi assim que propus aos meus atores que o atravessássemos.

Mas há um fator muito maior e mais visível: é a primeira vez (depois de quase 50 obras realizadas) que um teatro do chamado “circuito comercial” decide montar uma obra minha. “Inferno” pôde ser feito em grande estilo (em uma sala com 500 espectadores) principalmente pelo risco estético assumido por Andrea Stivel, programadora da sala Astros, que decidiu me contratar para fazer minha peça lá, sem me pedir para mudar uma única vírgula do que ela dizia.

É uma experiência artística inédita (temos uma produtora, uma cenografia, um guarda-roupa, uma música que faz inveja no bairro), mas ao mesmo tempo acontece em um circuito que não está acostumado com estes enigmas teatrais, tão pouco compatíveis com o confortável jantar burguês pós-teatro.

E a experiência deu muito certo: os ingressos estão esgotados, o público a celebra, as críticas são elogiosas. É algo muito estranho que leva a pensar: por que não aconteceu antes? Por que se podia pensar que minhas obras não eram para as massas ou lucrativas? Nunca tive essa preocupação, pois já tinha visto meus trabalhos em Paris, Berlim ou Milão se apresentarem muito bem em grandes teatros ou comerciais. Mas isso nunca tinha acontecido na minha cidade, porque já sabemos que ninguém é profeta em sua terra.

“Inferno” é única porque toca em tom de comédia (úmida) em uma série de questões que o teatro normalmente não visita dessa maneira. Como podemos passar do riso desenfreado a dizer, por exemplo, que nossa cidade foi construída ao lado de uma vala comum?

“Inferno” é desconfortável e pode ofender muitos públicos por motivos muito diferentes (crentes, feministas, militantes). Mas também tem uma magia estranha, que reconcilia os opostos: em uma boa peça, ninguém (nem os personagens nem o autor) está em condições de afirmar nada. Todos perguntam. E essas respostas são as que exigem um público ávido e curioso, um público que – eu gostaria de pensar – pode ser o da minha própria cidade.

 

Perguntas de Rafael Spregelburd para Malú Bazán

 

Rafael Spregelburd – Em minha companhia, dizemos que comédia e tragédia são categorias pouco úteis para se aplicar ao teatro contemporâneo. “Inferno” é talvez como uma tragédia clássica (o herói deve ser aniquilado por uma falha interna em sua própria constituição), mas que é contada como comédia: tem paródia, sarcasmo, exagero, absurdo. Ou, em todo caso, pensamos que existem dois teatros: um seco (solene, monumental, rígido, de grandes verdades intocáveis) e um úmido (o úmido implica tanto as lágrimas quanto as risadas, já que ambas as respostas são produto de não saber como processar o que se vê em cena). Como vocês lidam com o humor incômodo (os humores) dessa peça tão inclassificável? Acreditam que haverá públicos ofendidos? Há milhares de chances de que a obra desperte todo tipo de rejeições, porque esse temas geralmente “não são abordados assim”.

Malú Bazán – Talvez seja exatamente o fato de esse texto ser inclassificável o que mais me atraía nele. Também não costumo lidar bem com a palavra “comédia” como uma caixinha onde se supõe entretenimento. Acho que o humor é político sempre, e concordo que rir nem sempre indica conforto.

“Acho que o teatro que me interessa é aquele que move, tira do lugar, desarranja as coisas, e nisso os seus textos são puro combustível.”

Eles inquietam, incomodam, nos obrigam a pensar coisas por outros ângulos. Realmente chamaria seu teatro de perturbador. E “Inferno” não poderia ser diferente. Toda vez que tentei “explicar” o texto em palavras, gaguejei. Precisei me embrenhar nele como numa floresta, me perder, para aí conseguir (espero) traduzir em gestos, imagens, sons, suas provocações para construir essa encenação.

Gostei também dessa definição de teatro úmido e seco (vou adotar, se você me permitir, afinal aqui temos a antropofagia como parte da nossa tradição). Pensar esse teatro úmido, aquoso, que tem espaço para o outro, que é permeável e difícil de conter, me instiga. Tenho uma frase no mural de casa que diz “quem anda no trilho é trem de ferro. Sou água que corre pelas pedras: liberdade caça jeito”. Esse teatro que caça jeito me interessa.

Mas, voltando à pergunta, se acho que a peça pode incomodar, causar alguma rejeição, não sei bem… Durante os ensaios, muitas vezes entre nós tivemos incômodos no lidar com a peça, coisas difíceis de dizer, de “atuar”, de agir sobre elas, um pouco como o que você relatou sobre seus ensaios.

Mas acho que seria uma contradição se não nos atrevêssemos a compartilhar com o público esse incomodo, ou se quiséssemos facilitar a coisa. Não faria sentido, não é? É exatamente esse incômodo, esse riso que surge do NÃO lidar bem com tudo o que sentimos a nos deparar com nossa história, com essa peça, com a gente mesmo, que nos convoca a refletir. Coisa que estamos precisando muito nesse momento. Acho isso uma semente de subversão linda e na qual aposto.

 

Rafael – É comum aos artistas da periferia (como Argentina e Brasil) que os teatros da Europa nos imaginem como uma espécie de “trombetas de guerra” (de algum tipo de guerra) e que nos peçam obras que expliquem nossas realidades, enquanto eles se reservam, no fundo, o direito exclusivo da filosofia, do pensamento abstrato, do não urgente. Já sentiu alguma vez a necessidade de reagir violentamente a essas atribuições?

Malú – Ahhhh!!! Claro que sim. Vontade de gritar. E talvez montar essa peça faça parte desse grito. Não quero explicar minha realidade, quero lidar com ela, subvertê-la, brigar com ela, fazer as pazes, reinventá-la, mentir sobre ela, sonhar com outra. Mergulhar em “Inferno” tem a ver com isso. Minha realidade está lá, no meio desse labirinto, mas não retratada como uma história memorialista, que explica o que fizemos até aqui para alguém de fora. Ela está lá, nós de dentro, podemos reconhecê-la, a espiamos, ela incomoda, mas me reconhecer nela traz a possibilidade de mudança.

“Aqui na América Latina fazer teatro já é um ato de resistência, e, nesse momento, cada vez mais.”

Nos permitir fazer um teatro que filosofa, que abstrai, que simplesmente busca formas, e que não está a serviço de nenhum desejo alheio é essencial. E isso não é apenas importante para quem faz teatro, é fundamental para toda uma sociedade, pois o teatro se dá no encontro, na polis, na troca, no meio da praça pública, no choque.

Uma cultura não apresenta uma sociedade, ela é a sociedade. E mesmo estando nessa “periferia” do mundo (numa forma já distorcida de olhar o globo) temos todo o direito e a necessidade de construir um mundo, que, como você mesmo diz, é uma construção de linguagem, e temos que poder fazer isso do jeito que quisermos e não do jeito que esperam que o façamos.

 

Rafael – Brasil e Argentina são vizinhos muito queridos, mas também são muito diferentes em muitos aspectos. Minha experiência no Brasil me diz que nossas tradições teatrais não poderiam ser mais distantes. Você que vive aí há muito tempo, como acha que o quadro político do seu país condiciona as atividades artísticas? Para quem é o teatro que estão fazendo?

Malú – Para responder essa pergunta, tenho antes que aclarar que falar do teatro no Brasil como se fosse algo único seria arrogante da minha parte e absolutamente incompleto. O que posso comentar é um recorte a partir da minha perspectiva, da minha trajetória e deslocamentos para talvez filosofar sobre isso.

Tendo esclarecido isso. Vamos lá. Nasci na Argentina, mas fui criada no Brasil. Meu teatro tem alicerces em São Paulo e um pezinho-coração em Recife, onde morei dois anos. Nesse caminhar, percebo que as condições soció-política-econômicas vêm gerando estéticas. A construção de uma cena com poucos atores, pouco cenário, que tem que ser rápido para montar e fácil de transportar. Um teatro que já estreia adaptado, pois poucas vezes tem condições de lidar com a arquitetura (questão que me fascina) do teatro onde vai estrear.

Também gera um teatro ensaiado no meio do corre, na brecha, na resistência e movido por desejo. Acho que, quando você nos conta aqui sobre “el teatro independiente”, nos reconhecemos em vários aspectos. Esse teatro tem muita potência, criatividade, mas sempre penso como seria ter outras possibilidades. Que teatro emergiria de melhores condições de trabalho. Espero que cheguemos a ver isso acontecer por aqui.

Sobre a segunda pergunta: pra quem é o teatro que estamos fazendo? Costumo dizer que se um teatro, um espaço teatral, fecha e só quem reclama é quem faz teatro, então temos um problema. Mas nesse momento pôs-pandêmico tenho sentido a vontade das pessoas de irem ao teatro, talvez pelo teatro mesmo, talvez pela vontade do encontro. Mas de qualquer maneira é bonito de ver, e de fazer parte disso.

“Acho que o teatro é algo que preparamos, mas que só acontece naquele momento em que temos alguém no palco e alguém na plateia, e ambos atuam, aí temos teatro.”

Então pensar com quem fazemos teatro, mas do que pra quem estamos fazendo teatro, me parece uma forma mais completa de olhar pra questão. Pensando nisso também tenho tentado me deslocar pra fazer teatro com diferentes públicos, tentando me expandir, me questionar e repensar.

Acho saudável me mover, experimentar diálogos em palcos grandes e outros pequenos e em diferentes regiões da cidade ou do país, circular pela América Latina, seja levando minha peça daqui pra lá ou trazendo textos de lá pra cá, ou sendo plateia, pois acho isso um deslocamento importante também.

Talvez isso seja até mais importante. Bom, não sei se consigo dizer pra quem ou com quem estamos fazendo teatro, mas posso dizer que faço parte desse quem, e que, se você vier pra cá ou eu tiver a oportunidade de ir pra aí, serei parte desse público.